Texto: Marcelo “CDX”
Revisão: Felipe Souza
Apenas duas palavras: jogue e surpreenda-se.
Há muito tempo, lá no meio dos anos 1980, em uma terra distante chamada Japão, Shigeru Miyamoto deu início a uma franquia com um apelo estranho para aqueles tempos: habilidade com botões não era mais suficiente, o jogador precisava botar a cabeça para funcionar. Com uma infinidade (para a época) de itens e lugares a serem explorados, o primeiro Zelda alavancou o que é hoje uma das franquias mais importantes da casa Nintendo. Jogo após jogo, a série até os dias atuais vem se mantendo quase invicta numa habilidade em extinção no mundo gamístico: mesclar evolução, qualidade e tradição desde o primeiro jogo. Três fatores onde, no geral, pelo menos um é sacrificado pela maioria das franquias da geração NES/Master System sobreviventes até hoje e preferidas pelos veteranos. O jogo do qual vamos falar demonstra que, sim, é possível fugir a essa regra.
Zelda vem fazendo a cabeça de muita gente desde que nasceu, e se ainda atrai público novo sem perder público velho, algo de muito curioso há nisso. Afinal, não é todo jogo que mantém o mesmo tronco e cria fortes galhos há mais de 25 anos. Não é todo enredo, muito menos um dos mais vendidos e reconhecidos pela mídia e pelo público, que tem sempre a mesma história básica dos antecessores, mas que os mínimos detalhes alterados no roteiro tornam todo esse mesmo roteiro diferente. Não é toda obra que, se você tiver apenas experimentado a primeira versão lançada há 27 anos, saberá reconhecer que é a mesma coisa, e que mesmo assim passou mais de duas décadas evoluindo até a exaustão. Perdão, com Zelda essa exaustão ainda não chegou, e continua parecendo distante.
Sem mais delongas, o jogo.
A Lenda tem início
“Esta é só uma das lendas das quais as pessoas falam…
Há muito tempo, existiu um reino onde um poder dourado situava-se escondido. Era uma terra abençoada com florestas verdes, montanhas altas, e paz. Mas um dia, um homem de grande mal encontrou o poder dourado e o tomou para si, e com a força dele a seu comando espalhou a escuridão pelo reino. Um jovem garoto vestido de verde apareceu como se surgisse do nada, e armado com a lâmina de exílio do mal ele mandou o ser do escuro embora. Esse garoto ficou conhecido como o Herói do Tempo, e o conto dele foi passado pelas gerações até se tornar uma lenda… Mas então veio um dia em que o grande mal rastejou para fora do solo, ansioso de continuar seus negros intentos. As pessoas acreditaram que o Herói do Tempo viria novamente para salvá-las, mas o herói não apareceu. O povo não pôde fazer nada senão apelar aos deuses, e em sua última hora deixaram seus futuros nas mãos do destino. O que houve do reino? Não restou ninguém que soubesse. A lembrança do reino desapareceu, mas sua lenda sobreviveu nos sopros do vento. Em certa ilha, tornou-se costume vestir garotos de verde-do-campo quando chegavam na idade. Eles aspiravam encontrar lâminas heroicas e abater o mal. Os anciãos apenas desejavam que os jovens conhecessem a coragem como o herói da lenda.”
Você é Link, é seu aniversário, e chegou a sua vez de passar um dia vestido de verde em obediência à tradição. Na verdade a paz reina na ilha, há tempos não há mais motivos para sair em aventuras, e um velho guerreiro nas redondezas é o único conhecido que ainda entende de cruzar espadas. Está bem, você coloca a roupa desconfortável. Afinal, é só por um dia. Ou é o que você pensa. Pois assim que sua irmã caçula lhe empresta de presente a luneta de estimação dela, vocês avistam uma ave gigante carregando uma garota, sendo perseguida por piratas e… vindo em direção à ilha! Sua irmã está em um ataque de nervos quando o pássaro é atingido por um canhão e a garota cai na única parte relativamente perigosa da ilha: a floresta. Resta, obviamente para você, salvar o dia. Coisa vai, coisa vem, e assim que você salva a garota (que descobre ser a capitã dos piratas) sua irmã é sequestrada no lugar dela, e com algum esforço e ajuda você consegue convencer os piratas a te darem uma carona até o destino do pássaro.
A tal lenda, por sinal uma introdução belíssima que passa antes de o jogo começar, sem dúvidas não está lá à toa, e o sequestro da sua irmã é a grande deixa para você entrar de cabeça em algo de proporções épicas. Zelda prima pela sua história ser na maioria das vezes simples e clichê ao extremo, e mesmo assim estupenda graças à sua beleza e elegância. Estamos diante da clássica luta do bem contra o mal, representada como sempre foi na série: por um triângulo cujas pontas são você, a princesa do reino chamada Zelda, e o vilão Ganon. Insira no meio do triângulo o poder sagrado, a dourada Triforce, e você já tem em mãos a essência da bela história de The Wind Waker, com toda a sua elegante simplicidade.Um reino encantado, um conto de fadas, e muita magia
Zelda de um modo geral – e The Wind Waker muito especialmente – se assume já de cara como um jogo voltado para o mundo da fantasia, mas sem apostar todas suas fichas na fofura. É um jogo épico, mas daqueles que nos fazem pensar por que contos de fadas não são sempre contados assim, e porque histórias épicas não são sempre contadas como contos de fadas. Você verá criaturas (mágicas, aladas, ancestrais, fadas e mais um monte), lugares dos mais variados (de montanhas a florestas, passando por castelos e cidades, e um gigantesco oceano separando tudo), monstros encantados e gigantescos para combater, tudo acontecendo em um reino fantástico e fantasioso que transborda beleza dos mais diferentes meios e modos. E viverá cada grama disso, pois você não assistirá à história, mas fará parte dela. Um dos maiores focos da série sempre foi a imersão, e The Wind Waker vai ao além do que parecia já insuperável. Você faz tudo o que geralmente um guerreiro faz e cada comando vem dos seus dedos, de tal modo que qualquer lugar é alcançável, tudo é interativo, e nada acontece a menos que você dê o pontapé inicial. Junte uma pitadinha, ou melhor, uma senhora pitada de capricho e perfeccionismo por parte da equipe de produção, ao ponto de você olhar para as estrelas com a luneta e ver que elas têm aquele formato com cinco pontas. Está pronta a receita.
A esta altura do texto, percebe-se que qualquer novato pode jogar The Wind Waker e deliciar-se, mas mesmo assim nostalgias pipocando o tempo inteiro provocarão aquele arrepio clássico na espinha dos veteranos. Os momentos mais saudosos de toda a série estão aqui e lá, desse ou daquele jeito sem parar. O roteiro baseado em Zelda – Ocarina of Time (não pensem que a lenda da introdução é tudo), músicas que não ouvíamos há eras, menções e presença de lugares e pessoas conhecidas. Tudo, sem parar, o tempo inteiro. Claro, apenas velhos fãs de Zelda notarão tais coisas, e mesmo sem notá-las a experiência não deixa de ser gratificante.
Quem conhece Zelda já sabe o que esperar na hora de saborear a mecânica de jogo: um Ocarina of Time melhorado n vezes. Você fará uso dos mais diversos itens, que fazem as mais diversas coisas – de um arco-e-flecha com poder de congelamento até uma batuta que controla os ventos – tudo em tempo real com um pressionar de botão. Vasculhará fortalezas, vulcões, torres e tudo o mais, onde desvendará enigmas para passar pelas salas e enfrentará como chefe uma criatura fantástica cuja fraqueza precisará descobrir. Explorará um mundo e precisará ir e vir o tempo inteiro por diferentes motivos. Poderá simplesmente ir até o fim do jogo, ou fazer mais explorações e atividades do que o necessário em troca de diversão extra, evolução da personagem, itens legais, dinheiro, etc. Lições de moral super básicas serão vistas de frente, e se você for esperto algumas mais elaboradas estarão nas entrelinhas. O de sempre, com aquele toque a mais como sempre.
Aqui, sua TV ganhou vida
Entenda-se: tudo em The Wind Waker salta para fora da tela, começando pelos traços característicos do nível que você já espera a esta altura. Todas as salas, personagens, itens e até efeitos foram extraordinariamente bem desenhados, e aqui as expressões faciais desempenham pela primeira vez na série importância fundamental para nos trazer o carisma dos personagens, inclusive figurantes. O efeito de vivacidade causado pela união de uma competente técnica cel-shade a cores vibrantes e variadas faz com que você simplesmente não acredite que são só imagens em uma TV. Nada de vídeos em computação gráfica, tudo aqui usa o mecanismo do jogo para acontecer. Mas mesmo assim, uma simples bomba explodindo ilustra bem o que escrevo. Assim como o surgimento de um chefe, absolutamente todos os cenários e ambientes, um pôr-do-sol… Enfim, tudo o que acontece na tela parece vivo demais para estar apenas acontecendo na tela. E com a versão HD, tudo isso se intensificou.
Eleva-se a batuta
Não há muito a comentar sobre as músicas, além do fato de terem sido estupendamente criadas e executadas. Algumas inéditas dignas do compositor Koji Kondo e versões novas de temas clássicos. Algumas inclusive até agora só haviam aparecido uma vez na série, tempos atrás. Lembra da história da nostalgia? Sobre os efeitos sonoros, vivacidade novamente. Cada ruído, cada nota, cada voz (apenas um murmúrio ou riso de vez em quando, nada de diálogos dublados), cada estrondo está absolutamente condizente com o que aparece na tela. Assim como as músicas. Enfim, a parte sonora está ali para embalar você na aventura mágica, e cumpre muito bem o seu papel.
Coisas curiosas e relativos defeitos
Para quem não sabe, o GameCube permite uma conectividade com o Game Boy Advance graças a um cabo específico e isso é explorado aqui a partir de determinado momento do jogo. Embora você não vá sentir falta alguma se não possuir o portátil ou o cabo, não deixa de acrescentar algo. A pessoa com o GBA controlará Tingle (sim, o desenhista de mapas!) de modo que através da telinha portátil ele revelará algumas passagens secretas, lhe fará flutuar, venderá munição (Acabou o estoque de bombas? Tingle resolve.) e… desenhará mapas! Geralmente ele cobra algo, mas todos sabemos que em Zelda o dinheiro literalmente nasce na grama. No Wii U, essa função não existe, mas foi substituída por uma nova mecânica, aproveitando a vertente social do console, na qual jogadores de todo o mundo podem se ajudar através da troca de mensagens manuscritas e lançadas ao mar em uma garrafa.
Outra novidade é a troca do mapa-mundi elaborado e complexo dos outros jogos por um oceano colossal. Quase tudo em The Wind Waker acontece em ilhas, algumas grandes e outras pequenas, e você velejará um bocado até poder, com um simples uso de item, ir pro outro lado do mundo em alguns segundos. Algum tempo depois do início do jogo você terá seu próprio barco (falante!) e isso lhe bastará por um longo período. A ideia é uma das novidades na série, pois ao invés de simplesmente usar botas que correm rápido e cavalos, você agora pode parar no meio do caminho para enfrentar um polvo gigante, pegar um tesouro submerso (existe todo um esquema de mapas pra isso que é super bacana), travar uma guerra de canhões ou puxar sua luneta para enxergar melhor aquela ilha lá longe.
Algumas coisas no jogo não contentaram a todos, é verdade, e no geral elas são bem relativas e polêmicas. Muitos acreditam que o oceano foi uma idéia ruim. De fato, se você quando joga videogame vai de um lugar ao outro apenas para chegar lá, ficará rapidamente cansado de velejar. Por outro lado, se gosta de curtir a viagem em si, o oceano nasceu para isso. Existem também os que reclamam de The Wind Waker ser fácil demais, embora seu predecessor no Nintendo 64 (Ocarina of Time) seja quase tão fácil quanto ele e não tenha recebido qualquer crítica nesse sentido. A verdade é que The Wind Waker foca na experiência do pegar-jogar-curtir, portanto os produtores entenderam que dificuldade seria algo ruim. Se você concorda com eles ou não, isso vem de você. E com a versão HD, há o Hero Mode para “corrigir” o “problema”. Talvez o único efetivo defeito (e que também estranhamente não levou críticas ao citado predecessor, embora seja um problema comum aos dois jogos) seja a notável pressa da equipe de produção nas últimas etapas do projeto. Embora o detalhismo esteja sempre presente, algumas situações praticamente jogam na sua cara “colocamos isso de última hora porque não deu tempo de cumprir o que estava planejado”, o que não deixa de ser estranho. Um exemplo? Alguns chefes prometem uma luta única, mas o jeito de derrotá-los é quase igual ao de algum outro, de um jogo anterior da franquia.
Uma lenda para ser contada
The Legend of Zelda The Wind Waker é isso. Já se passou mais do que uma geração de consoles e a obra ainda ensina algumas lições a muitos jogos recém-lançados por aí. Inclusive em questão de beleza gráfica, já que poucas vezes desde então a técnica cel-shade foi usada com tanta maestria. Quando The Wind Waker saiu, muitos achavam que seria um fiasco, pois “Como assim o jogo parece um desenho animado?” Pois bem, o jogo que parece um desenho animado veio e mostrou a todo mundo o que pode causar o ato de subestimar Shigeru Miyamoto, Eiji Aonuma e todas as mentes que se agregaram ao time nesses anos todos. Quem quer que continue com tal mentalidade, na melhor das hipóteses verá como o pensamento foi precipitado. Na pior, perderá um excelente jogo, e um Zelda como somente Shiggy, Eiji e seu time são capazes de fazer. Há mais de 25 anos Zelda faz o que faz de melhor, e não foi dessa vez que a história mudou. A história se repetiu. E a lenda veio atrás.