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“Cogitationis poenan nemo patitur”

Durante os eventos de Twilight Princess, quando Link e Midna chegaram à Câmara do Espelho, um Sábio lhes narrou o momento da tentativa de execução de Ganondorf. Na referida cena, faz-se menção a eventos ocorridos após Ocarina of Time, apontando-se que o Rei dos Ladrões foi preso e condenado por supostos crimes contra a Família Real de Hyrule.

Diante da narrativa, somada à experiência do jogador quanto aos eventos de OoT, a primeira ideia que vem à cabeça é que a pena seria mais do que justa, já que efetivamente Ganondorf atentou contra a família de Hyrule ao tomar o poder, apoderar-se da Triforça do Poder (na tentativa de furtar a peça completa), corromper o Reino ao o imergir em escuridão e, posteriormente, por sequestrar Zelda, a fim de lhe tomar a Triforça da Sabedoria e tentar matar Link, para possuir a Triforça da Coragem.

O problema é que, como é bem sabido por todos, TP é sequência de OoT pela Linha do Tempo de Link Criança, ou seja, o Reino Sagrado jamais foi aberto por Link, então Ganondorf nunca praticou quaisquer dos atos que todos conhecemos como obra sua, porque teria sido desmascarado antes disso.

Parte de timeline referente a linha do link criança

Twilght Princess e Majora’s Mask fazem parte da linha do tempo do Link criança

Pena sem crime?

É bem verdade que o Sábio de TP expressa que “Ele [Ganondorf] foi o líder de um bando de ladras que invadiu Hyrule na esperança de estabelecer domínio sobre o Reino Sagrado”, mas o testemunho para aí. Não se sabe exatamente em que consistiu essa invasão.

Seria uma marcha de Ganondorf e seu bando de ladras para dentro das muralhas do palácio, para tomar o poder? Seria considerada invasão o simples estabelecimento do clã Gerudo no Vale? Seria considerada invasão apenas a aproximação individual de Ganondorf junto à família real, tendo como segundas intenções tomar o reino? Será que suas visitas à Floresta Kokiri, ao Domínio dos Zoras e a à Caverna Dodongo seriam considerados invasão (se é que estes dois últimos vieram a acontecer na nova linha do tempo)?

Não se sabe. Não há informações suficientes sobre como os fatos se desenvolveram entre o momento em que Link avisou Zelda dos desígnios malignos de Ganondorf quanto aos destinos de Hyrule e o momento da prisão deste. Pode ter havido uma guerra sangrenta ou não ter acontecido nada.

Sobre o assunto, Eiji Aonuma apresentou uma explicação (?), em entrevista à Revista Nintendo Dream (em tradução livre*):

Na última cena de Ocarina of Time, as crianças Link e Zelda conversam e, como consequência dessa conversa, seu relacionamento com Ganon toma uma direção completamente diferente. No meio deste jogo [Twilight Princess], há uma cena mostrando a execução de Ganon. Foi decidido que Ganon seria executado porque ele faria algo ultrajante se lhe fosse permitido. Essa cena se passa vários anos após Ocarina of Time.

Pela simples leitura da explicação acima, parece que há um problema maior do que o existente ao se observar a narração do Sábio.

Melhor explicando: se se levar em consideração que Ganondorf foi preso apenas porque se sabia que ele “faria algo ultrajante se lhe fosse permitido”, cria-se uma grande celeuma quanto à justeza da pena.

Fazendo um exercício de justificativa, mesmo que se conjugassem as informações do Sábio (de que Ganondorf liderou seu bando numa invasão a Hyrule) e de Aonuma (de que Ganondorf iria além, se lhe fosse dada a oportunidade), ainda assim fica aquela sensação de que a pena de morte imposta foi exacerbada, já que esse “algo ultrajante” não chegou a ocorrer.

Direito Penal do Inimigo ou do Fato?

Antes que se levantem acusações dessa natureza, anote-se que não está aqui se estabelecendo a figura do advogado do diabo, pois não se pretende defender Ganondorf quanto a tudo que suas encarnações anteriores e posteriores fizeram. Está-se, simplesmente, analisando fria e juridicamente a questão específica dessa prisão (entre OoT e TP) e condenação em específico, pelos fatos restritos a ele imputados.

Antes de prosseguir com a análise, para facilitar o entendimento, será necessário adentrar a alguns conceitos jurídicos penais, mas promete-se que será uma rápida pincelada, só para ambientação.

Ao longo da história mundial, dois sistemas penais se destacaram: o Direito Penal do Agente ou do Inimigo (que vigorou fortemente até o final do século XIX em vários países, e a ideia ainda persiste até hoje em alguns deles) e o Direito Penal do Fato (adotado pela maioria dos países atualmente, incluindo-se o Brasil, embora ainda abrigue alguns resquícios do Direito Penal do Inimigo em algumas passagens).

O Direito Penal do Inimigo, enunciado pelo jurista alemão Güinther Jakobs, com base na teoria do Direito Penal do Agente/Autor, consiste na teoria de que o que se leva a julgamento são as características do acusado – que podem ser a aparência ou sua personalidade e pretensões – e não apenas seus atos. Vale dizer, a pessoa é julgada por ser má, feia ou por ter ideias malignas ou pretensão de cometer crimes e não apenas porque fez algo mau (classificado como crime). Essa teoria chega ao cúmulo de tentar traçar o perfil do criminoso “nato”**, permitindo-se seu afastamento da sociedade antes mesmo de praticar qualquer crime.

Ganondorf de Twilight princess segurando sua espada

Ganondorf de Twilight Princess

O Direito Penal do Fato, defendido pelo também alemão Claus Roxin, por outro lado, não leva em consideração o caráter pregresso do criminoso*** ou suas características pessoais, mas apenas o fato pelo qual o agente está sendo julgado. Vale dizer, não importa se o criminoso é mau, ou se cometeu aquele determinado crime por estava desesperado, ou, ainda, se pretendia fazer algo muito pior e não conseguiu por questões externas, pois o que importa é o que ele efetivamente fez.

Apenas alguns tipos de crime levam em consideração os motivos do crime e a forma com que foi praticado, mas, nesses casos, há previsão na lei. Se não tiver, não pode o juiz buscar essas informações, para aplicar uma pena mais forte ou considerar o réu culpado.

De qualquer forma, no Direito Penal do Fato, não se pode julgar e condenar ninguém como se o crime houvesse sido consumado, só porque cogitava fazer determinada coisa, pretendia praticar determinado crime, mas não o fez, restringindo-se a praticar parte dele ou nenhuma parte dele (no Brasil isso fica bem claro nos artigos 14 e 15 do Código Penal, com exceção do crime de “quadrilha ou bando”, previsto no art. 288 do CP).

Sistema Penal de Hyrule: Link Precog e o Direito Penal do Inimigo

Mas aí fica a dúvida: qual o sistema penal adotado por Hyrule? Infelizmente, diante das parcas informações sobre o contexto em que Ganondorf foi preso, tem-se a impressão de que Hyrule realmente é um reino medieval e adota o Direito Penal do Inimigo.

Veja-se que o próprio Sábio afirma que a prisão de Ganondorf se deu porque “ele estava cego… por toda sua fúria e poder, ele ignorava qualquer perigo, por conseguinte, foi exposto, subjugado e trazido à justiça”. Ou seja, não há um efetivo crime praticado, que o teria levado à justiça, mas mera exposição a todos de sua fúria e sede de poder, de modo que se entendeu que, solto, Ganondorf deixaria de ser uma simples ameaça e poderia trazer grandes prejuízos para o reino.

Ganondorf sendo executado em Twilight Princess

Ganondorf sendo executado em Twilight Princess

Pelas palavras de Eiji Aonuma, ficou claro que Ganondorf foi preso e condenado à morte, não porque tomou Hyrule, mas porque, se ficasse solto, viria a comer atos nocivos à população e à estabilidade do Reino, de sorte que foi preso e condenado à morte, antes que isso pudesse acontecer. E, pior, tudo com base em exercício de futurologia de Link, já que tinha viajado no tempo e visto do que Ganondorf seria capaz.

Link em Castle Courtyard encontrando Zelda

Primeiro encontro de Link e Zelda em Ocarina of Time

Pensando bem, a forma como ocorreu a prisão e condenação de Ganon, não parece familiar?

Quem já assistiu ao filme Minority Report (de Steven Spielberg) – baseado em livro homônimo, escrito por Philip K. Dick – deve se lembrar que a trama é focada em uma divisão especializada da Polícia de Washington D.C., intitulada “Precrime”, que, como o próprio nome sugere, tem por objetivo prender pessoas antes que cometam os crimes pretendidos.

Cover do filme Minority Report

Cover do filme Minority Report

A identificação do pré-crime se dá através de três “precogs” (pré-conhecedores), que veem o futuro e, com essas informações, a polícia tem condições de identificar o criminoso e a vítima, impedir o ato ilícito e, em função da sabedoria sobre o que iria acontecer, o criminoso é julgado e condenado, como se tivesse efetivamente praticado o crime.

Tudo parece lindo e bastante promissor para o futuro da segurança pública, mas o enredo demonstra quão falho é esse sistema, pois a imagem tida por crime pode simplesmente não se operar pelos motivos que se acha que o seriam, ou, mais importante, pode jamais se operar, pois o “criminoso” tem a liberdade de desistir da prática do crime a qualquer tempo.

Vale dizer, embora se tome por base uma fonte “segura” de informação do futuro (os Precogs de Minority Report e Link de Ocarina of Time), é difícil conceber a tomada de conclusões precipitadas e, mais importante, a condenação de alguém por algo que ela não praticou ainda.

A simples cogitação de um crime não pode ser apenada, pois crime não é. Os romanos já diziam isso, através do brocardo “Cogitationis poenan nemo patitur”, que significa, “não se penaliza o pensamento/cogitação”.

No sistema penal brasileiro, inclusive, há previsão de todas as etapas do crime, sendo que cada fase depende de atos efetivos (preparatórios e/ou executórios), para serem passíveis de pena. A cogitação, a mera especulação criminosa, contudo, não é considerada uma dessas etapas, de modo que não é apenada, de forma alguma (art. 31 do Código Penal).

Tendo isso em vista, se Ganondorf não invadiu Hyrule, não roubou a Triforça, não aprisionou Zelda, não destruiu o reino para estabelecer o seu, não expulsou todos os habitantes do reino para Kakariko Village e não tentou matar Link, não poderia, pelo sistema do Direito Penal do Fato, ser condenado por esses crimes.

Ganondorf de Ocarina of Time

Ganondorf de Ocarina of Time

Se for considerado que houve uma efetiva invasão (seja lá em que esta consistiu exatamente), é certo que Ganondorf deveria ser condenado pelos crimes de guerra (pelos atos efetivamente praticados), mas, pela falta de informações, é difícil saber que crimes seriam esses e se justificariam uma condenação à morte.

Vai que Ganondorf poderia mudar de ideia e, ao invés de uma marcha para tomar Hyrule, optasse por organizar uma parada Gerudo para ovacionar a família Hyrule e propor a união integral e harmônica do reino, ou, ainda, num ato de loucura, pedir Zelda em casamento?

OK, é preciso reconhecer que a especulação foi longe demais agora, mas o que precisa ficar aqui estabelecido é que, até que o fato realmente se desenvolva, não se pode penalizar ninguém por ele, pois não há como se ter certeza de que se desenrolaria na forma antevista.

Questão ainda obscura

Assim, salvo melhor juízo, por mais que se tenha a inclinação natural pela preservação do bem em detrimento do mal, não se pode colocar panos quentes sobre a questão e não se perguntar se a pena imposta foi exagerada ou não.

O que o leitor acha? Não deixe de comentar.

Para complicar ainda mais a questão, eis mais uma dúvida cruel: Não seria, talvez, por causa da imponderação da pena que “como uma espécie de brincadeira divina, ele [Ganondorf] foi abençoado com o poder escolhido pelos deuses [triforça do poder]”, manifestando-se esse poder naquele exato momento, impedindo sua morte através da Espada de Luz e acabando por obrigar os Sábios a “apenas” o prender no Reino do Crepúsculo?

Cena de Ganondorf sendo executado em Twilight Princess

A Triforça do poder se manifestando durante a execução

Pois é, com as parcas informações disponíveis, nunca se saberá…

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Curiosidades e definições

* “In the last scene of Ocarina of Time, kids Link and Zelda have a little talk, and as a consequence of that talk, their relationship with Ganon takes a whole new direction. In the middle of this game [Twilight Princess], there’s a scene showing Ganon’s execution. It was decided that Ganon be executed because he’d do something outrageous if they left him be. That scene takes place several years after Ocarina of Time.” —Eiji Aonuma (Nintendo Dream)

**A Teoria da Fisionomia pregava a correlação entre as características físicas (especialmente faciais) e traços de caráter. A teoria se tornou popular pelas mãos de Cesare Lombroso (1835–1909), fundador da antropologia/antropomorfia criminal, que defendia ser capaz de identificar cientificamente relação entre a natureza do crime e a personalidade ou aparência física do “criminoso”. Lombroso acreditava no conceito do “criminoso nato” e argumentava a favor do determinismo biológico, para reconhecer criminosos através de medidas de seus corpos. Ele concluiu que o crânio e os atributos faciais seriam pistas para a criminalidade genética e que esses atributos poderiam ser medidos com craniômetros e compassos de espessura, alcançando resultados por pesquisa quantitativa (Lombroso media os crânios e anotava os traços de criminosos condenados à morte, bem como buscava informações sobre os crimes cometidos por cada um, na busca por padrões). Alguns dos 14 traços identificados por Lombroso são: mandíbulas largas, A few of the 14 identified traits of a criminal included large jaws, forward projection of jaw; testa inclinada para baixo; maçãs do rosto elevadas; nariz achatado ou arrebitado; orelhas em formato de trinco de portas; narizes aquilinos ou lábios carnudos; olhos esquivos; barba esparsa ou calvície; insensibilidade à dor; braços longos e assim por diante.

***Na verdade, cada país adota um sistema penal um pouco diferente, então essa consideração varia. No Brasil, por exemplo, considera-se a vida pretérita do criminoso, na hora de fixar a pena (arts. 59 do CP), mas não se altera o crime em si.

Artigos do Código penal mencionados no texto:

Art. 14 – Diz-se o crime:

I – consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;

II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Parágrafo único – Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.

Art. 15 – O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.

Art. 31 – O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.

Art. 288 – Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes:

Pena – reclusão, de um a três anos.

Parágrafo único – A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.

Referências

The Hylia – Entrevista com Eiji Aonuma

Zelda Wiki – Ganondorf’s execution

Wikipedia – Direito penal do inimigo

Wikipedia – Claus Roxin

O canto da Filosofia – Minority Report

Wikipedia – Anthropometry

Wikipedia – Cesare Lombroso

Portal Planalto – Legislação

Zaffaroni, Eugenio Raul. Direito Penal Brasileiro – Teoria do Delito. São Paulo: Revan, 2012.

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