Depoimentos pessoais dos produtores da série, artworks inéditas, artes do processo de desenvolvimento de personagens e cenários, mangá original sobre os eventos de Skyward Sword, nada disso chamou mais a atenção em Hyrule Historia que a cronologia oficial de série, que, sem alarde, foi introduzida no livro.Isso se deve a dois grandes motivos:
a) primeiramente, porque colocou uma pá de cal sobre as infindáveis teorias sobre a existência ou não de uma cronologia exata da série, bem como suas tentativas extraoficiais, não muito convincentes, de ordenação dos capítulos e;
b) principalmente, porque apresentou ao mundo uma linha alternativa – após os eventos de Ocarina of Time – em que o Herói do Tempo não cumpre sua missão e sucumbe perante Ganondorf.
A inesperada visão do herói derrotado
Com essa inesperada linha temporal, houve completa alteração da visão quanto à sequência histórica de Hyrule, movimentando-se vários capítulos da série a posições nunca antes imaginadas (salvo as sequências imediatas de conhecimento público, que foram deslocadas em bloco), mas que fizeram todo o sentido. O que não fazia sentido, e foi visto com resistência por alguns, era a possibilidade de Link ser derrotado pelas forças do mal.
O leitor já deve ter se perguntado “mas será que alguém tinha pensado na possibilidade de Link ser derrotado em algum momento? Será que havia elementos suficientes nas introduções dos jogos para conduzir a esse entendimento?”.
Provavelmente, aqui, caberia dupla resposta afirmativa. No entanto, o alcance desse entendimento não é tão simples assim, na medida em que, conforme se verá na sequência, há uma grande dificuldade em se admitir a derrota de um herói. Além disso, a história de Hyrule é rodeada de hiatos que sempre foram empecilhos para os cronologistas teóricos, no momento de tentar desenvolver uma proposta extraoficial de linha do tempo. Em sendo assim, é forçoso pensar que a ideia de uma terceira linha do tempo, baseada na derrota do Herói do Tempo, se passou pela mente de algum proponente, foi sumariamente descartada, antevendo maciça rejeição dos fãs da série.
A afirmação acima é resultado de uma negação simples: o pensamento literário ocidental não consegue dissociar, com facilidade, a figura do herói do sucesso do bem sobre o mal.
A fórmula da narrativa ocidental e a confiança no herói
Se observarmos a narrativa de filmes, novelas, séries, livros, desenhos animados e, claro, jogos eletrônicos, a maioria adota a seguinte fórmula:
a) Alguém é colocado na função de herói;
b) por força dessa função, é o indicado a solucionar dado problema;
c) referido problema é provocado por outro alguém (inimigo) ou fenômeno e;
d) a solução do problema é imperativa para restabelecer a paz ou socorrer/conquistar alguém.
Essa fórmula está presente em histórias desde as mais simples e cotidianas até as mais complexas e épicas, com leves modificações em seu interior. Anote-se que, em qualquer delas, a audiência se identifica com o herói e, por isso, torce por ele, de modo que, nos raros casos em que sua missão não é cumprida, há grande espanto e, muitas vezes, indignação do público. Fala-se em espanto e indignação, porque não se está fazendo referência a sacrifício do herói em prol do bem comum, mas a falha pessoal na consecução de seu objetivo.
Por mais que se tente, é bastante difícil conceber um cenário em que o herói não sai vitorioso de sua jornada, porque, há séculos, a sociedade ocidental é treinada a acreditar na sempre certa vitória do bem sobre o mal. Essa visão, como é intrínseco, é amplamente projetada na ficção, notadamente, porque é possível manipular os fatos, criando resultados positivos.
Ato contínuo, é comum centralizar o heroísmo em uma ou poucas pessoas e se exigir que o título de herói seja conferido apenas àqueles que triunfarem em sua tarefa. Por essa razão, não se admite que o resultado almejado com a jornada heroica seja alcançado apenas após longos anos, bem como que muitos ou todos os heróis envolvidos, não vejam o raiar do dia da glória.
Ocorre que essa forma de pensamento é uma das maiores causas de frustração da humanidade, pois não permite a percepção de que a vitória, ainda que póstuma, pode ter sido alcançada em prol do bem comum. Além disso, cria-se injusto sobrepeso à jornada do apontado herói, pois tem que carregar todas as mazelas do mundo em seus ombros, enquanto o público que dele “depende”, embora o aplauda e deposite sua confiança, omite-se em pidir as rédeas do futuro perturbador que o aguarda.
Nos games não é diferente e o peso é ainda maior, pois o jogador assume, literalmente, a posição do herói e é desafiado a cumprir determinados objetivos. Por força disso, ninguém se sente feliz, ou sequer é recompensado pelo jogo, ao ser derrotado em sua luta.
Zelda e a novela das 8 (?)
Como é óbvio, a série The Legend of Zelda observa a fórmula tradicional da narrativa ocidental ao colocar Link na posição de herói, incumbido de derrotar o vilão Ganon e restabelecer a paz em Hyrule, salvando a princesa Zelda.
Ressalte-se, ainda, que Zelda traz muitos elementos da escola romântica de literatura, na medida em que coloca a personagem Zelda numa posição de destaque (tanto que dá nome ao jogo), tornando-a o objeto de desejo tanto do herói quanto do vilão, mas, ao mesmo tempo, um ser intocável – tal qual se verifica a figura feminina na literatura romântica (pense nos livros de José de Alencar, por exemplo). Tanto isso é verdade que, embora todo jogador torça para que um dia alguma das encarnações de Zelda dê uma chance para as pobres encarnações de Link, até agora não houve qualquer sinal de que isso vá se tornar realidade, pois o amor que existe entre Link e Zelda acaba se tornando, sempre, quase fraternal e, portanto, impossível.
Mais clichê que tudo isso, impossível, não? Mas, então, porque uma fórmula tão batida consegue conquistar tanto o público? Ora, é simples: esse tipo de história é adorado por legiões de jogadores, porque permite se inserir em um mundo cheio de aventura em que, ao final, todos viverão “felizes para sempre”. Mundo este que, o leitor há de convir, é bem mais interesse que o real em que está inserido.
“Eu não gosto dessas histórias de mulherzinha… Zelda não é novela das 8”, você pode dizer. E o leitor tem razão, pois uma coisa não tem nada a ver com a outra. Entretanto, é inegável que a gênese estrutural da narrativa é exatamente a mesma. Não importa se se está jogando God of War, assistindo aos Vingadores ou a um episódio de Ursinhos Carinhosos, a estrutura da narrativa é igual e quem se interessar pela história, vai se colocar na pele do herói da trama e quererá que ele saia vitorioso ao final.
É por essa razão que, sem qualquer rubor, todo jogador veste a túnica verde junto com Link e aceita o desafio de desbravar florestas, montanhas, mundos submersos e até os céus, enfrentar qualquer monstro – não importando seu tamanho ou se cospe fogo – para salvar a princesa, ou lutar ao seu lado, e trazer de volta a paz para o mundo.
É por isso também que muitos se mostram céticos e desviam o olhar quanto à possibilidade de as coisas não seguirem conforme o esperado, pelo menos para o herói, e se zangam quando são derrotados no game ou quando o personagem favorito não sai vencedor em sua jornada.
Mudança do paradigma da vitória
Há grande possibilidade do leitor ter se deparado com depoimentos da seguinte ordem: “Ah, eu não assisto mais Game of Thrones, sempre quem eu torço morre”, ou, então, “Os filmes de O Senhor dos Anéis são muito melhores que os livros, porque o Frodo do cinema é muito mais corajoso. No momento decisivo ele derruba Gollum na lava, enquanto que no livro ele queria ficar com o anel e só não ficou porque Gollum arrancou o dedo dele e acabou caindo na lava”.
Fica claro o que se está tentando dizer aqui? É muito difícil para uma grande maioria – acostumada à cena do herói incluso no “felizes para sempre” – entender a completude do objetivo dissociada da ideia de vitória do herói.
No livro O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei, Tolkien mostra que é possível o bem vencer o mal, mesmo que o herói vacile ou fracasse, na medida em que “paz” e “felicidade” são conceitos muito abstratos e não dependem de uma única pessoa ou episódio. É preciso a colaboração de muitas pessoas e, no caso de Frodo, um pouco de sorte também. Analisando friamente, o escritor tem razão, pois embora Frodo tenha fraquejado, paradoxalmente o objetivo foi alcançado e houve o bonito final em que todos são presenteados com a paz.
Observando a versão Tolkiana original – sob o prisma da indissociabilidade do sucesso pessoal do herói e a vitória almejada – fica aquela sensação de “isso é blá, blá, blá, Frodo era um banana… na hora da decisão, ele falhou” e, em função disso, o fato de que a vitória foi alcançada mesmo assim, acaba eclipsado. Tanto isso é verdade, que Peter Jackson teve que dar uma sutil adaptada no desfecho da história, para o adequar, ainda que minimamente, aos padrões esperados pelo público consumidor dos filmes de Hollywood.
Nas Crônicas de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire) – que deram origem à série de TV Guerra dos Tronos (Game of Thrones) – George R.R. Martin leva ao extremo essa visão amplificada da conquista da vitória dissociada da figura do herói único. O escritor é tradicional por criar um ambiente e características para os personagens, fazendo com que cativem o público, mas, quando o desfecho parece próximo e promissor ao herói, ironicamente este acaba morto. Isso, porém, não significa que o grupo “bonzinho” perdeu e o mal triunfou definitivamente. Não.
Nas crônicas de Martin a expressão “perdeu a batalha, mas não a guerra” é uma constante e uma máxima absoluta, deixando claro que muitos heróis morrem, muitos fracassam em sua jornada, mas tal fato não é motivo para se perder a esperança, pois a conquista real é algo muito maior e envolta por inúmeros episódios de derrota e vitória.
É aí que o terceiro braço da cisão temporal após Ocarina of Time se destaca e mostra relevância, pois quebra o paradigma de que uma única pessoa é capaz de resolver todos os problemas do mundo e, se não o fizer, não haverá outros meios de se evitar a catástrofe.
Observe-se que, segundo essa nova interpretação da linha temporal, a derrota de Link para Ganondorf não significou o fim de Hyrule. Muito pelo contrário, embora Ganondorf tenha conseguido a Triforce completa, seus desígnios obscuros não foram atingidos a contento.
Conforme indicado no preâmbulo de A Link to the Past, os Sete Sábios – possivelmente Rauru, Saria, Darunia, Ruto, Nabooru, Impa e Zelda – selaram Ganon no Reino Sagrado, juntamente com a Triforce completa, como forma de evitar que toda a terra de Hyrule fosse convertida num mundo de trevas. Vale dizer, a derrota de Link não importou na queda de Hyrule, pois se encontrou outro caminho, ainda que significasse o selamento da própria Triforce.
A Lenda de Hyrule
Com isso, é possível afirmar que a história de Hyrule não pode ser analisada apenas sob a ótica do herói, da princesa e do inimigo. Deve ser lida como a história de um povo, dentre o qual, periodicamente, emergem três personagens-chaves, detentores das essências da Triforce.
De toda sorte, a história não é apenas desses três personagens, mas de toda a nação hyruliana, que, de alguma forma, mantém-se firme em pé, não importando os males que a assolam, nem que isso signifique ter que se afastar da proteção da Triforce por uns tempos, ou inundar por completo a terra. Assim vencendo pessoalmente o herói, ou não, é certo que Hyrule seguirá adiante, juntando os cacos da última batalha e restabelecendo a ordem do reino.